segunda-feira, 6 de julho de 2009

A nós


A colheita dos doces frutos, os bagos esmagados,
dentro de talhas feitas de barro cozido ferveram,
sob o olhar de deuses do povo, o cheiro efervescente
deixou advinhar o devaneio do ritual líquido de etéreo bebível.



Saltita em pé caprino sempre por perto,
ele serve tudo o que se dissolve em nós,
todos os néctares que anulam o superficial correcto,
ele sorri enquanto bebe contigo
aquilo que mais vos agrada aos dois,
mais sorri na tua cara espelho quando se torna maior
dentro de ti, se o convidas a entrar ele diz-te,
Já por cá andava no teu sonhar,
se não, apenas se ri do teu olhar ingénuo de surpresa,
e diz-te ao ouvido, Pede dois bem cheios de sentir.



Ritual líquido de Vinália conjurada
num presente bebido, sagrado libertar das almas,
semideuses agora, antes de termos sido apenas mortais,
subjugados às falsas vontades de Deuses castrados.




A Júpiter e a Vénus bebemos com Baco em todos nós.

segunda-feira, 1 de junho de 2009

Quarto Escuro


Era de tarde e chovia, olhou para a janela fechada
na casa onde sempre permanecera fechado,
isolado a lêr os espaços vazios do quarto,
lia nos pequenos vazios escuros sitios de rochas afiadas,
imaginava-se entre elas a tentar o quase impossivel equilibrio
para que não se ferisse nas laminas feitas de pedra,
escrevia como conseguia livrar-se de quedas vertiginosas e
aparatosas em que quase morria, sorria e deixava-se dormir
antes da chegada da próxima tempestade escondida.


Por trilhos de rochas afiadas, sem qualquer meio de suporte
ao equilibrio de um mero mortal que tente provar através
dos mais ousados mergulhos a impossível capacidade de nadar
através da mais impura água condensada de negro lodo e verde limo.



Apenas o singular medo de cair das alturas no mais profundo
desconhecido anseio, o trágico cair, temo-o com todo o meu mais
infantil ser feito de homem frágil que ainda quer brincar
o faz de conta que acontece durante o breve raiar de sol
em céu limpo e azul, no intervalo entre negras nuvens de tempestades.


Estou de volta ao novo principio,
sempre como se fosse o primeiro.


Enquanto saio dos lugares mais pertos e familiares
gosto de observar o vazio dos sitios menos vistos,
aqueles que fazem cantos com pouca luz, na sombra,
novos de desconhecido, eles conseguem fazer-me sentir
a mais solitária e completa percepção do que me rodeia
por dentro da minha existência menor, por dentro,
nos sitios que fazem cantos escuros e abstractos.


As sombras dançantes que celebram um fim próximo,
o fim próximo.


Estou de volta ao velho principio,
sou aquele que escreve dentro de mim em papel,
Eu, o ideal pensador que concebe a miragem do homem que nada teme.
Qual a côr da tinta com que escrevo,
em que papel feito de pessoas repousam as letras?

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

Ritmos


Hoje é noite de ritmos não tão apreciáveis quanto a exigente
vontade de libertar os primeiros pensamentos de crua realidade,
que insiste cada vez mais em enraizar-se na alma que me preenche
e quer transbordar o excesso para o espaço exterior feito de ar,
que se respira e continua a ser o mesmo desde sempre,
utilizado por outros tantos que já não são,
por outros tantos que há muito o utilizam e dizem.


" A vida é uma coisa engraçada..."



As cruéis provações do ser que ainda resiste em não acreditar,
que realmente foram coisas que aconteceram e assim o formaram
e moldaram a existência sentida de coisas que se preferem ter
como irreais.

Estou sentado e recuso-me ainda a aceitar a realidade,
que é tão maior que qualquer idealização selvagem
que o meu intelecto consegue fabricar,
como uma recordação de algo que nunca existiu e tenta
pela força da razão apaziguar a nua e sentida vivência
do que nos rodeia e nos invade impiedosamente.

Hoje tento aceitar a tão pura realidade,
que não é escrita em palavras vans e imprecisas
descrições do ser que tento.

Ontem fui e consegui com a facilidade com que algo nasce
sem as barreiras feitas de matéria inerte,
inexistente de quaisqueres vontades concebidas numa
necessidade que foi e será sempre presente.

sábado, 10 de janeiro de 2009

Lunar

Hoje caminho apenas comigo, é sábado e caminho pela rua sob um manto de estrelas que iluminam esta noite de verão, a lua já nasce grande de um amarelo alaranjado no horizonte, promete subir alto, para que todos a vejam lá.

Saí de casa, tinhamos combinado encontrar-nos pra celebrar mais um inicio de estação, novo solsticio, hoje há festa no terraço de pedra, com musica ao vivo tocada por violinos e instrumentos de percusão, o ponto de encontro é perto do poço antigo situado no centro do terraço de pedra, sitio habitual onde nos costumamos dar a tertúlias existênciais e devaneios sem sentido, costumam terminar ao fim de uma considerável quantia de espirituosas e cerveja, noto sempre que a profundidade do poço até chegar á superficie da água é explicitamente longa, visto a boca deste ficar no primeiro andar do edificio.

Reparo sempre no mesmo como se fosse a primeira vez, o poço, nunca ninguêm soube ao certo o porquê desta peculiar construção, recordo-me de quanto o achei sinistro quando o vi pela primeira vez, a sensação que ainda hoje consigo sentir quase com a mesma fragilidade, as teorias são variadas, diz o povo que foi necessário em tempos de escassez de água nas demoradas secas pra dar de beber apenas aos senhorios que habitavam o edificio, de forma resguardada da vista da população, nas vozes que apenas murmuram disfarçadamente, há quem diga que tinha uma finalidade mais morbida igualmente secreta.

Caminho com os meus pensamentos.

Chego á porta do edificio, entro e subo as escadas, estão velhos quadros expostos nas paredes, fotografias monocromáticas de antigas familias com os seus serviçais, chego ao topo, no interior do pátio do terraço passo pelas pessoas que lá se encontram, algumas sentadas, outras de pé,todas conversando efusivamente, passo invisivel por todas elas, observo a banda a dar os primeiros movimentos de som, encosto-me á parede de granito do poço, enrolo um cigarro enquanto penso no que vou escolher beber, embora já saiba que vá ser o habitual, o verde absinto que inspira pelas fadas ninfa.
Gosto sempre de fazer este pequeno exercicio desnecessário no inicio da noite, como um preliminar saturniano,resolvo-me pelo escolhido, absinto com água tonica, dou o primeiro trago e acendo o cigarro, o primeiro fumo com hálito de fada, enquanto aprecio esta doce combinação, reparo num homem a aproximar-se vestido com traje obscuro longo de mandarim, desloca-se num passo lento e cadente mas certo da sua direcção até mim.

Tráz consigo um engenho no interior de um carrinho de metal enferrujado com 2 rodas de madeira, escondido por um pano castanho finamente bordado de azul, algo transparente, deixando transparecer a sinhueta de algo no seu interior, algo que se move, é-me apresentado o escondido, um engenho com três puleiros de pássaros, a decoração é refinada, decorado com pedras semi-preciosas e pelo estado aparente da madeiraparece ser de uma idade de construção avançada, os puleiros são suspensos, aparentemente vazios, eles baloiçam com um mover organico como se tivessem de facto ocupados por três passaros invisiveis, com um balançar alternado e muito unico em cada movimento.

O convite é feito prontamente pela peculiar personagem, olha-me nos olhos, como se me conhecesse desde sempre e diz:

- "Aproxima-te e oferece a tua mão aos puleiros e serás escolhido por um dos seus residentes."

Aproximei-me, bastante seguro e descrente que de facto fosse acontecer alguma coisa, sem hesitar, ofereci a mão, as coisas nunca mais seriam vistas da mesma forma, quando fui mordido por algo, com tal intensidade que percorreu-me desde o dedo indicador até ao resto do corpo como uma descarga electrica.

Estou paralisado.


Senti-me a perder a nocção do tempo, como se tivesse gradualmente a parar tudo á minha volta, a visão apagou-se enquanto ainda nutria o pensamento de negação, não queria acreditar que realmente estava mesmo algo em cima daqueles puleiros, 3 majestosos corvos marinhos que se tornaram visiveis apenas por um singular instante, com olhos verdes esmeralda, delineados com uma linha vermelha escarlate, tinham a profundidade do infinito negro de um abismo.

Fui transportado pra outro sitio, quando recuperei a visão estava em queda, num sitio nublado, com a claridade de uma lua imensa que mais parecia sangrar luz, aves nocturnas, corvos marinhos e gaivotas em fogo, sobrevoavam-me durante a queda, até que caí num mar escondido pelo nevoeiro mais denso proximo da água, o meu corpo foi arrastado aos poucos até ao fundo daquele oceano, até sentir apenas o frio gélido e a mais negra escuridão,até me encontrar completamente só e desprotegido, e começar a deixar de nutrir qualquer pensamento de morno conforto.

No fim, a caminho do fim aceitei a minha singular existência e consequente solidão, calando assim qualquer pensamento e lamento para sempre.

O negro, apenas o negro e o silêncio.

Estou de volta ao momento seguinte á mordedura, a confusão dissipa-se aos poucos, tudo aconteceu em menos de um segundo, embora a experiência tenha durado em mim uma eternidade, o tempo necessário até me deixar cair numa total descrença.


Depois da intensa experiência, abrir-se-ia outra fonte sensorial, um novo sentido, feito de vozes, que murmuram, avisam alertamente, aconselham, sempre num modo de ave que sobrevoa das mais variadas formas, pelos céus da noite, pelos pensamentos mergulhados no mais recondito, naquilo que se esconde nos outros, por dentro daqueles que pensam que apenas assistem, supremo poder que certamente traria um preço, certamente elevado, um pacto consumado que ainda estava por desvendar todos os seus designios,sendo o valor do seu preço, aquilo que invade os homens, aquilo que inspira o medo, ao divagar por dentro e sobre os homens, naquilo que os faz sentirem-se sós.

O pacto consumado com o que se esconde na sombra do pensamento escolhido desde a minha origem, acordado para ele desde o momento,a invasiva aceitação a que os mergulhos no desconhecido obrigam.

No terraço de granito gasto pelo tempo e pelos passos, aproximo-me, saio nú de dentro de mim e fluo em ti e agora já sei quem somos.