sábado, 10 de janeiro de 2009

Lunar

Hoje caminho apenas comigo, é sábado e caminho pela rua sob um manto de estrelas que iluminam esta noite de verão, a lua já nasce grande de um amarelo alaranjado no horizonte, promete subir alto, para que todos a vejam lá.

Saí de casa, tinhamos combinado encontrar-nos pra celebrar mais um inicio de estação, novo solsticio, hoje há festa no terraço de pedra, com musica ao vivo tocada por violinos e instrumentos de percusão, o ponto de encontro é perto do poço antigo situado no centro do terraço de pedra, sitio habitual onde nos costumamos dar a tertúlias existênciais e devaneios sem sentido, costumam terminar ao fim de uma considerável quantia de espirituosas e cerveja, noto sempre que a profundidade do poço até chegar á superficie da água é explicitamente longa, visto a boca deste ficar no primeiro andar do edificio.

Reparo sempre no mesmo como se fosse a primeira vez, o poço, nunca ninguêm soube ao certo o porquê desta peculiar construção, recordo-me de quanto o achei sinistro quando o vi pela primeira vez, a sensação que ainda hoje consigo sentir quase com a mesma fragilidade, as teorias são variadas, diz o povo que foi necessário em tempos de escassez de água nas demoradas secas pra dar de beber apenas aos senhorios que habitavam o edificio, de forma resguardada da vista da população, nas vozes que apenas murmuram disfarçadamente, há quem diga que tinha uma finalidade mais morbida igualmente secreta.

Caminho com os meus pensamentos.

Chego á porta do edificio, entro e subo as escadas, estão velhos quadros expostos nas paredes, fotografias monocromáticas de antigas familias com os seus serviçais, chego ao topo, no interior do pátio do terraço passo pelas pessoas que lá se encontram, algumas sentadas, outras de pé,todas conversando efusivamente, passo invisivel por todas elas, observo a banda a dar os primeiros movimentos de som, encosto-me á parede de granito do poço, enrolo um cigarro enquanto penso no que vou escolher beber, embora já saiba que vá ser o habitual, o verde absinto que inspira pelas fadas ninfa.
Gosto sempre de fazer este pequeno exercicio desnecessário no inicio da noite, como um preliminar saturniano,resolvo-me pelo escolhido, absinto com água tonica, dou o primeiro trago e acendo o cigarro, o primeiro fumo com hálito de fada, enquanto aprecio esta doce combinação, reparo num homem a aproximar-se vestido com traje obscuro longo de mandarim, desloca-se num passo lento e cadente mas certo da sua direcção até mim.

Tráz consigo um engenho no interior de um carrinho de metal enferrujado com 2 rodas de madeira, escondido por um pano castanho finamente bordado de azul, algo transparente, deixando transparecer a sinhueta de algo no seu interior, algo que se move, é-me apresentado o escondido, um engenho com três puleiros de pássaros, a decoração é refinada, decorado com pedras semi-preciosas e pelo estado aparente da madeiraparece ser de uma idade de construção avançada, os puleiros são suspensos, aparentemente vazios, eles baloiçam com um mover organico como se tivessem de facto ocupados por três passaros invisiveis, com um balançar alternado e muito unico em cada movimento.

O convite é feito prontamente pela peculiar personagem, olha-me nos olhos, como se me conhecesse desde sempre e diz:

- "Aproxima-te e oferece a tua mão aos puleiros e serás escolhido por um dos seus residentes."

Aproximei-me, bastante seguro e descrente que de facto fosse acontecer alguma coisa, sem hesitar, ofereci a mão, as coisas nunca mais seriam vistas da mesma forma, quando fui mordido por algo, com tal intensidade que percorreu-me desde o dedo indicador até ao resto do corpo como uma descarga electrica.

Estou paralisado.


Senti-me a perder a nocção do tempo, como se tivesse gradualmente a parar tudo á minha volta, a visão apagou-se enquanto ainda nutria o pensamento de negação, não queria acreditar que realmente estava mesmo algo em cima daqueles puleiros, 3 majestosos corvos marinhos que se tornaram visiveis apenas por um singular instante, com olhos verdes esmeralda, delineados com uma linha vermelha escarlate, tinham a profundidade do infinito negro de um abismo.

Fui transportado pra outro sitio, quando recuperei a visão estava em queda, num sitio nublado, com a claridade de uma lua imensa que mais parecia sangrar luz, aves nocturnas, corvos marinhos e gaivotas em fogo, sobrevoavam-me durante a queda, até que caí num mar escondido pelo nevoeiro mais denso proximo da água, o meu corpo foi arrastado aos poucos até ao fundo daquele oceano, até sentir apenas o frio gélido e a mais negra escuridão,até me encontrar completamente só e desprotegido, e começar a deixar de nutrir qualquer pensamento de morno conforto.

No fim, a caminho do fim aceitei a minha singular existência e consequente solidão, calando assim qualquer pensamento e lamento para sempre.

O negro, apenas o negro e o silêncio.

Estou de volta ao momento seguinte á mordedura, a confusão dissipa-se aos poucos, tudo aconteceu em menos de um segundo, embora a experiência tenha durado em mim uma eternidade, o tempo necessário até me deixar cair numa total descrença.


Depois da intensa experiência, abrir-se-ia outra fonte sensorial, um novo sentido, feito de vozes, que murmuram, avisam alertamente, aconselham, sempre num modo de ave que sobrevoa das mais variadas formas, pelos céus da noite, pelos pensamentos mergulhados no mais recondito, naquilo que se esconde nos outros, por dentro daqueles que pensam que apenas assistem, supremo poder que certamente traria um preço, certamente elevado, um pacto consumado que ainda estava por desvendar todos os seus designios,sendo o valor do seu preço, aquilo que invade os homens, aquilo que inspira o medo, ao divagar por dentro e sobre os homens, naquilo que os faz sentirem-se sós.

O pacto consumado com o que se esconde na sombra do pensamento escolhido desde a minha origem, acordado para ele desde o momento,a invasiva aceitação a que os mergulhos no desconhecido obrigam.

No terraço de granito gasto pelo tempo e pelos passos, aproximo-me, saio nú de dentro de mim e fluo em ti e agora já sei quem somos.